É impossível falar sobre a história do automóvel sem falar na Mercedes-Benz. Isto porque a Daimler A.G., esta a razão social da empresa, seu verdadeiro nome, além de ser uma das mais prestigiadas, é a mais antiga entre todas as montadoras de veículos em operação no mundo. Esta razão social, aliás, é muito nova, data de 2007. De 1998 a 2007 ela se chamava Daimler Chrysler e anteriormente a isto, desde 1926, era Daimler Benz. Antes disto eram duas empresas das quais vale a pena conhecer um pouco da história: a DAIMLER MOTOREN GESELLSCHAFT (Sociedade de Motores Daimler) de Canstatt, criada em 1882 e a BENZ & CIE, RHEINISCHE GASMOTOREN-FABRIK A.G.(Sociedade Rhenana de Motores a Gás Benz & Cia), de Mannheim, fundada em 1883.
Os seus fundadores, Gottlieb Daimler e Karl Benz nem se conheciam, mas tiveram a mesma ideia, nada comum naquela época: aplicar à locomoção de carros o motor a combustão interna, leve e rápido, fazendo, assim, veículos de propulsão autônoma. Estes motores a combustão interna eram ainda uma idéia nova que vinha sendo desenvolvida e à qual eles se dedicaram, independentemente, com muito afinco e pleno sucesso.
Gottlieb Daimler nasceu em 1834. Seguindo a vocação de seu pai, estudou mecânica na Escola de Artes e Ofícios de Stuttgart. Depois de formado, sempre querendo aprender mais, foi para Paris onde se empregou na firma Grofenstaden. Nesta empresa, que mantinha uma espécie de escola profissional para dar cursos a seu pessoal, Daimler ficou por quatro anos e meio e aprimorou sua formação técnica. Voltando à Alemanha seguiu seus estudos na Escola Politécnica de Stuttgart. Isto foi em 1857, muito antes das primeiras experiências com veículos motorizados.
Em outubro de 1859, então com 25 anos, ele voltou a trabalhar na Grofenstaden, desta vez na Alsáscia e como engenheiro encarregado da construção de locomotivas. Para ele, no entanto, o futuro estava noutro tipo de máquina, em algo que ele chamava de “uma máquina sempre pronta a funcionar”, o que não era o caso das máquinas a vapor. Ele propôs à diretoria que o deixassem desenvolver este projeto, mas estes não aceitaram a sugestão.
De Paris vinham notícias maravilhosas sobre o motor a gás de Lenoir e Daimler resolveu correr atrás de seu sonho. Em 1860 deixou novamente a Grofenstaden e foi ver de perto como era aquela maravilha. Não gostou muito, mas, mesmo assim, tirou vários ensinamentos úteis para a máquina que ele ainda viria a construir. Nos dois anos seguintes Gottlieb ficou entre a França e a Inglaterra trabalhando e aprendendo, vendo tudo o que se fazia em termos de desenvolvimento mecânico e novas máquinas.
Em 1862 voltou para a Alemanha onde durante dez anos trabalhou em algumas empresas importantes. Foi neste período de sua vida que conheceu Wilhelm Maybach, outro gênio da história do automóvel, cuja memória foi recentemente revivida com o lançamento, pela atual Daimler, do espetacular Maybach, um dos automóveis mais caros e exclusivos do mundo.
Em 1872 ele aceitou o cargo de Diretor Técnico da Casa Deutz onde estava Otto o inventor do ciclo do motor a quatro tempos e levou Maybach como chefe do departamento de projetos. Eles trabalharam lá por dez anos até que em 1882 vieram se instalar em Canstatt, cidade natal de Gottlieb onde ele criou seu primeiro motor de combustão interna a alto regime. Este motor “nasceu” no verão (hemisfério norte) de 1883, era um monocilindro horizontal e funcionava de maneira bastante satisfatória, mas sua potencia não pareceu suficiente a Daimler. Em 1885 ele testou um novo motor, desta vez com cilindro vertical e refrigerado a água, capaz de fornecer uma potencia bem superior com peso e volume sensivelmente reduzidos, que recebeu o famoso apelido de “Standuhr”, algo assim como “Relógio de Pé” ou “Carrilhão”, devido a sua forma. Gottlieb Daimler estava então com 51 anos.
Standuhr
E Karl Benz? Karl era dez anos mais moço, nasceu no país de Baden e também vinha de uma família com alguma tradição na mecânica. Seu avô era forjador e seu pai, depois de ter sido mecânico, havia se tornado maquinista de locomotivas. Não consta que Karl Benz tenha saído da Alemanha para estudar. Depois de completar seus estudos empregou-se como serralheiro em uma fábrica de máquinas em Karlsruhe indo, dois anos mais tarde trabalhar como desenhista e construtor numa firma de Mannheim. Depois de alguns estágios intermediários em outras empresas ele fundou, em 1871, com um sócio, um atelier de mecânica. Esta sociedade, entretanto, não deu certo, o sócio saiu e ele ficou só e, apesar das grandes dificuldades financeiras daí surgidas, criou um pequeno motor a dois tempos que foi a base de sua atividade industrial.
Em outubro de 1883, com 39 anos, ele estava fundando a Benz & Cie cujo objeto social era “a fabricação e venda de motores a gás e de iluminação elétrica”, um ousado pioneirismo.
Consta que o primeiro carro motorizado a circular no mundo foi o triciclo de Karl Benz. Ele foi apresentado ao público de Mannheim e arredores em 3 de julho de 1886 e desenvolvia a velocidade de 15 km/h. Era movido por um motor de um cilindro, a quatro tempos, que desenvolvia 0,8 cv a 250 rpm e era montado na traseira. A refrigeração era do tipo a vaporização, realizada por meio de um recipiente que cobria o cilindro e continha a reserva de água.
O triciclo de Benz e um fac-símile de sua patente.
Um pouco antes, em 1885, Daimler apresentara um veículo de duas rodas, uma espécie de precursor das motocicletas, movido por um motor de 0,5 cv a 700 rpm e não muito depois apresentou seu primeiro automóvel. Este primeiro carro de Daimler era, na realidade, uma caléche na qual os cavalos tinham sido substituídos por um motor. O foco de Daimler, aliás, estava nos motores. Veículos sobre rodas, para ele, eram apenas uma das aplicações viáveis para seus motores. Ele pensava também em barcos, trens e dirigíveis aéreos. Sim senhor! Em 1888, mais precisamente no dia 12 de agosto, o motor de um cilindro de Daimler, a esta altura já bastante aperfeiçoado, equipou a “aeronave” dirigível do Dr. Wölfert que fez com ele um vôo de 4 km . O próprio Conde Zeppelin escreveu, anos mais tarde, que lhe teria sido impossível fazer voar seus dirigíveis sem os motores de Daimler. Há quem diga que o significado da estrela de três pontas é exatamente este: terra, mar e ar.
A “moto” e a “caleche motorizada” de Daimler.
Apesar de os carros de Daimler não serem sua principal preocupação eles foram evoluindo e deixando de ser simples carruagens motorizadas passando, pouco a pouco, a apresentar uma arquitetura mais adequada à nova proposta, para o que muito contribuiu o gênio de Maybach que continuava com ele. Enquanto isto Benz passava a fabricar veículos de quatro rodas e cada vez mais potentes (3, 4 e depois 5 cv).
Em julho de 1894 o austríaco Von Liebig empreendeu um “raid” de 939 km com um modelo VICTORIA fabricado por Benz. Ele foi de Reichemberg na Bohêmia a Reims, ida e volta. As notas desta viagem foram conservadas e nelas ele informa que consumiu 140 kg de gasolina e 1500 l de água de refrigeração.
Dando seqüência ao sucesso do VICTORIA, Benz apresentou o VIS-A-VIS e depois o VÉLO tido como o primeiro carro do mundo fabricado em série, do qual fabricou 1200 unidades entre 1894 e 1901.
Victoria Vis-a-vis
Vélo
Até aqui a preocupação destes pioneiros não era com a velocidade de seus carros. Afinal de contas viviam em um mundo onde a velocidade média sobre as estradas, de 15 a 20 km/h, não variava desde a invenção da carroça puxada a cavalos, coisa de mais de dois mil anos. Muito mais importante lhes parecia, em relação aos carros de tração animal, aumentar a autonomia do veículo e torna-lo mais prático e econômico.
Por volta de 1890 era possível construir um “carro sem cavalos” a um custo equivalente ao de uma viatura “hipomóvel” de três cavalos completa, com cavalos e seus arreios. Já o custo de manutenção poderia ser reduzido à metade, considerando a necessidade de se manter, pelo menos, um cocheiro para cuidar dos cavalos, atrela-los e dirigir o veículo, além do espaço necessário para cocheiras e tudo o mais. Além disto, o percurso diário máximo que se poderia esperar de uma viatura a cavalos era de 50 km e cada vez que se quisesse utilizar o veículo, precisava antes tirar os cavalos da cocheira e atrela-los o que demandava um bocado de tempo.
Gottlieb Daimler e Karl Benz, como já vimos, tinham origem modesta e formação técnica. Como naquela época um carro de dois cavalos era o meio de transporte habitual das pessoas ricas e um de quatro cavalos servia bem às muito ricas, para eles era perfeitamente lógico pensar que a invenção de carros motorizados com motores de 2 a 5 cv de potência responderia a todas as necessidades. Carros eram pensados apenas para os ricos, é claro. As idéias de massificar a produção e democratizar o produto só vieram bem mais tarde com Henry Ford.
Durante os primeiros dez anos, ou seja até 1895, este foi o raciocínio básico que norteou o desenvolvimento dos carros de ambos
Esta concepção utilitária, entretanto, desapareceu quando a novidade do transporte motorizado migrou da Alemanha para a França. No dia 22 de julho de 1894 teve lugar a primeira corrida de “carros sem cavalos”, organizada no percurso de 126 km que separava Paris de Rouen. Participaram 102 veículos movidos por 20 diferentes sistemas de propulsão e o primeiro a chegar foi um quadriciclo a vapor DE DION-BOUTON. Os quatro carros seguintes eram movidos a motores a gasolina e, todos, usavam motores Daimler de 3 ou 4 cv. Em 2º, 3º e 5º lugares chegaram três PEUGEOT e em 4º um PANHARD-LEVASSOR. Acabou acontecendo que o DE DION-BOUTON foi desclassificado por não satisfazer a todas as exigências do regulamento e a vitória foi atribuída ao PEUGEOT.
No ano seguinte aconteceu uma nova prova muito mais dura, considerada por muitos como a primeira verdadeira corrida de automóveis do mundo. Longa, de 1192 km, ela se desenrolou no percurso Paris-Bordeaux-Paris. Esta corrida representou um verdadeiro triunfo para Daimler já que, dos sete primeiros colocados, seis utilizavam seus motores.
Nem Daimler nem Benz eram entusiastas das corridas, mas ambos souberam compreender a importância das vitórias para a imagem de suas marcas e o sucesso de seus respectivos negócios e, já que era assim, que fosse para valer. A corrida pela potencia começava! Em 5 anos, de 1895 a 1900, as dimensões dos motores quadruplicaram e a potencia se elevou de 4 a 24 cv, aumentando seis vezes, portanto.
Em 1899 a Sociedade de Motores Daimler decidiu construir um carro concebido especialmente para as corridas, o DAIMLER PHOENIX de 23 cv que acabou sendo o primeiro MERCEDES. A história do nome MERCEDES é curiosa. Havia em Nice um rico comerciante austríaco chamado Emile Jellinek que comprava os carros de Daimler e os revendia, com sucesso crescente, ao público internacional que freqüentava a Riviera. Aficcionado pelo automobilismo esportivo, comprou um Daimler Phoenix e o inscreveu na prova comemorativa à “Semana do Automóvel de Nice de 1899” sob o pseudônimo de MERCEDES que era o nome de sua filha de onze anos. O carro foi o vencedor da prova. Na qualidade de bom cliente, com influencia junto à fábrica, insistiu muito para que Daimler construísse um carro mais potente, com um entre eixos mais longo e um centro de gravidade mais baixo do que o Phoenix de 23 cv. O resultado foi a MERCEDES de 35 cv da qual ele encomendou 36 exemplares impondo algumas condições: queria a representação exclusiva para a França, Bélgica, Áustria, Hungria e América e que eles fossem vendidos sob o nome MERCEDES. O sucesso foi tamanho que a fábrica acabou, a partir de 1902, adotando o nome Mercedes para todos os seus carros.
Mercedes 35 CV
Gottlieb Daimler, já muito doente, assistiu apenas ao início desta produção e faleceu em 6 de março de 1900.
Benz construiu entre 1899 e 1900 a PARSIFAL, uma máquina de 60 cv com 4 cilindros com a qual alcançou sucessos notáveis. A partir daí os carros de competição ocuparam um lugar cada vez maior nas duas firmas e ambas adquiriram reputação mundial por causa disto. Em 1909 Benz construiu um carro de 150 cv que deu muito o que falar, principalmente nas provas americanas e inglesas. Em março de 1910 o corredor americano Barney Oldfield, pilotando uma versão especial deste carro na qual a potencia tinha sido aumentada para 200 cv, estabeleceu um record absoluto de velocidade atingindo a 211,4 km/h. Este carro entrou para a história com o apelido de “Blitzen-Benz” (Benz Relâmpago). Em abril de 1911 Bob Burman melhorou ainda mais esta marca com o mesmo carro, atingindo a 228,094 km/h, record este só superado uma dezena de anos depois.
Parsifal Blitzen-Benz
Estas duas empresas, Daimler e Benz, vinham, desde o início de suas atividades, fabricando carros de classe superior, tinham muita identidade cultural e de interesses. Era lógico que acabassem por unir seus destinos. Um acordo de comunhão de interesses foi assinado em 1924 e a fusão total das duas em uma só empresa, a SOCIEDADE ANÔNIMA DAIMLER BENZ com sede em Stuttgart, ocorreu em 1926. É claro que para isto muito influíram as dificuldades inerentes ao período pós primeira guerra mundial.
Após a fusão a nova empresa progrediu rapidamente. Seu programa de produção não se restringiu aos automóveis, caminhões, camionetas e ônibus, mas se estendeu também a outras aplicações da motorização tais como motores estacionários, motores de aviação e marítimos. Os motores Diesel sempre ocuparam um lugar importante na Daimler-Benz que soube aproveitar a experiência adquirida nos veículos pesados para ser a primeira a desenvolver um motor deste tipo para carros de passeio. Em 1936 lançou o primeiro carro de turismo com motor Diesel, o 260 D de 4 cilindros, 2,6 litros que conseguia fazer 10 km/l e foi um sucesso de vendas. Hoje toda a linha Mercedes, com exceção dos esportivos, é disponível, opcionalmemte, com este tipo de motor que não chega ao Brasil por não ser permitido o uso do Diesel em carros de passeio.
A presença da marca nas corridas, com sucesso, foi uma constante até 1955 com interrupções devidas apenas às duas grandes guerras mundiais. Em 1955, no auge da gloria, a Mercedes decidiu se retirar das corridas em função do gravíssimo acidente ocorrido com um de seus carros durante a corrida “24 Horas de Le Mans”, no dia 11 de junho daquele ano. O Mercedes 300 SLR pilotado por Levegh, depois de ter sido batido por trás pelo Austin Healey de Macklin, literalmente voou sobre a arquibancada principal atingindo fatalmente cerca de 150 pessoas.
Esta retirada no auge da glória, foi uma demonstração de elegância digna dos carros da marca, mas a Mercedes já não precisava provar nada a ninguém, seus carros já tinham adquirido uma imagem de qualidade, luxo e performance que dura até hoje quando, pouco a pouco, associada à McLaren, ela começa a voltar às pistas.
Esta história, que se confunde com a própria do história do automóvel, é exemplar também sobre outros aspectos, porque estamos falando de uma empresa que soube criar uma tradição firmemente fundamentada sobre a continuidade de sua política industrial e comercial desde seus primórdios e nunca se afastou dela.
Note que a marca alcançou uma reputação de bom gosto e qualidade através da produção de carros de um luxo discreto, jamais revolucionários em sua aparência, mas tendo sempre a técnica mais avançada, e isto desde seu começo. Outro ponto é que a Mercedes nunca caiu na tentação de fabricar carros situados nas faixas mais baratas do mercado. Com isto sempre evitou prejuízos ao prestigio social inerente ao fato de se possuir um Mercedes. De quebra, ela minimizou o risco de ver seus carros andando por aí sujos e mal cuidados, é raro ver-se um Mercedes caindo aos pedaços pelas ruas.
É um raro caso de firme crença em sua Missão, Visão, Valores e Princípios, termos que, muito provavelmente, nem eram usados na época.
Fontes:
Fotos: Wikipedia
Texto:
Gunther Molther em “L’anée automobile” - 1958/1959 – “”Mercedes ou l’art de faire briller une etoile”.
Laurence Pomeroy em “L’anée automobile”- 1960/1961 – Dejá petiit mais encore trop grand…”.
Revista 4 Rodas, diversas edições